Onças-pintadas estão sendo ‘expulsas’ da Mata Atlântica pela ação humana, mostra estudo
Um monitoramento realizado desde 2017 em uma das poucas áreas ainda preservadas da Mata Atlântica reuniu dados preocupantes sobre a onça-pintada, um dos animais símbolos da fauna brasileira, classificado como “criticamente ameaçado de extinção” pela União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN).
Cada vez mais raras, as únicas onças encontradas pelos pesquisadores estão “fugindo” e se refugiando em pontos mais altos, remotos e distantes da presença humana em uma parte da floresta que vem sendo chamada por ambientalistas de “Grande Reserva Mata Atlântica”.
Essa região é o último e maior corredor remanescente do bioma no país, um trecho de 3 milhões de hectares de florestas preservadas e que abrange as imediações da cidade de São Paulo, a serra do mar paulista, o litoral do Paraná e o norte de Santa Catarina. No total, 60 municípios estão nesse perímetro.
A Grande Reserva, que ganhou esse nome em 2018 após a criação de um coletivo de ambientalistas, gestores públicos e empresas que atuam na preservação do “contínuo”, é formada por 110 unidades de conservação públicas e particulares, como o Parque Nacional de Superagui, no Paraná, o Parque Estadual da Serra do Mar, em São Paulo, e o Legado das Águas — uma reserva da empresa Votorantim, no sul paulista.
O monitoramento foi feito por pesquisadores do programa Grandes Mamíferos da Serra do Mar, que estuda e desenvolve projetos de conservação das três maiores espécies de mamíferos da Mata Atlântica: a própria onça-pintada, a anta e a queixada.
A partir de 2017, os pesquisadores passaram a instalar armadilhas com câmeras para tentar registrar imagens das onças que vivem em um bloco de floresta de 1,7 milhão de hectares, principalmente no Paraná. O equipamento fica por volta de 60 dias em um ponto da mata, e é acionado por um sensor de presença.
Em mais de seis anos de pesquisa, apenas 11 onças foram flagradas dentro desse perímetro — cada animal pode ser reconhecido por seu padrão único de manchas na pele.
“Pelo tamanho da região, a taxa de ocupação pelas onças é baixíssima. Há áreas de 80 mil hectares sem vestígios de onça, um vazio total. Isso é muito preocupante”, diz o biólogo Roberto Fusco, coordenador do programa Grandes Mamíferos e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN).
O projeto de pesquisa é apoiado pela Fundação Grupo Boticário e pela ONG WWF-Brasil.
Segundo o pesquisador, o estudo revelou um comportamento comum entre onças e suas principais presas, a queixada e a anta, também flagrados pelas câmeras: os animais estão se deslocando para encontrar refúgio em áreas remotas e o mais distante possível dos seres humanos.
“As três espécies estão fugindo para pontos com altitude maior, de acesso mais difícil e fora do raio de ação humana, como rodovias e plantações”, explica Fusco.
Ele cita o caso de um macho apelidado de Loki pelos cientistas. “Ele foi visto duas vezes. A primeira foi em São Paulo e a segunda já no Paraná, atravessando a rodovia BR-116. Ele se deslocou por cerca de 45 quilômetros, indo para uma área de acesso mais difícil, provavelmente em busca de comida e de proteção”, diz.
Onça criticamente ameaçada
A União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN) estima que existam apenas 250 onças-pintadas em todos os fragmentos de Mata Atlântica que sobraram no Brasil, classificando a espécie presente no bioma como “criticamente ameaçada” em sua “lista vermelha”, o nível mais alto antes da extinção na natureza.
A onça-pintada está na maioria dos biomas brasileiros, embora ela tenha características e comportamentos diferentes a depender do local, segundo os pesquisadores.
No Pantanal, por exemplo, onde há mais indivíduos, ela pode até se aproximar da atividade humana – são desse bioma as famosas imagens de documentários da TV com onças atacando e comendo suas presas.
Já na Caatinga e na Mata Atlântica, onde são mais raras e difíceis de registrar, elas tentam ficar o mais distante possível da atividade humana e de qualquer alteração em seu habitat, explica Fusco.
“A onça-pintada da Mata Atlântica tem hábitos solitários. Cada onça pode ter uma área de vida de até 50 mil hectares, embora essas áreas se sobreponham, principalmente durante a caça e períodos de acasalamento”, explica. “O lado bom da pesquisa é que conseguimos registrar filhotes, o que mostra que há pontos onde a reprodução está acontecendo.”
Convivência pacífica
Embora a onças-pintada evite os seres humanos, ela também pode se aproximar de comunidades tradicionais que ficam dentro de reservas ambientais ou em suas fronteiras. Segundo a bióloga Mariana Landis, coordenadora do Programa Grandes Mamíferos da Serra do Mar, isso acontece por conta da escassez de alimentos.
“Quando a onça não encontra queixadas e antas, ela pode atacar animais da pecuária ou até domésticos em busca de comida”, diz a bióloga. “Isso faz com que algumas pessoas, por vingança ou mesmo medo de ter uma onça por perto, acabem caçando e matando o animal. A caça é uma das principais ameaças para a espécie.”
Outros fatores, diz Landis, estão relacionados ao desmatamento, especulação imobiliária, construção de rodovias e o extrativismo ilegal de recursos da floresta, como o palmito.
“A onça vem sendo perseguida e tendo seu espaço suprimido há muitos anos. É natural que ela tenha esse comportamento de fugir para áreas mais distantes. É preciso mais políticas voltadas para uma ‘coexistência’ pacífica entre fauna e comunidades tradicionais, para que todo mundo entenda a importância de não caçar esses animais”, explica.
Onças como sentinelas
A Mata Atlântica vai do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul, passando por outros 15 Estados brasileiros e também por Argentina e Paraguai. Segundo a WWF-Brasil, apenas 8,5% da floresta original sobreviveu. O que existe hoje, em grande maioria, são pequenos fragmentos de vegetação espalhados pelo país.
Dados do MapBiomas, plataforma que monitora a transformação do uso do solo no Brasil, mostram que 81,3 mil hectares foram desmatados na Mata Atlântica no ano passado, um crescimento de 9,1% em relação a 2022.
Segundo o relatório, a maior parte dessa destruição aconteceu em regiões de expansão do agronegócio e em áreas fronteiriças com outros biomas, como Cerrado e Caatinga, em especial na Bahia e Mato Grosso do Sul.
Para Ricardo Borges, coordenador de comunicação e parcerias do movimento Grande Reserva Mata Atlântica, as onças-pintadas – e também a anta e a queixada – são “animais sentinelas” que indicam a qualidade da floresta em pé.
“Elas são espécies que dependem muito da conservação integral do habitat. Por isso, só há onças onde a floresta está produzindo perfeitamente. Se você pensar na natureza como uma fábrica, a onça consegue se reproduzir quando todas as peças estão funcionando”, explica.
Já Marion Silva, gerente de ciência e conservação da Fundação Grupo Boticário, uma das entidades que integram o movimento, o conjunto de reservas é um dos últimos lugares onde a onça-pintada da Mata Atlântica ainda consegue sobreviver e se reproduzir na natureza.
“Os animais não respeitam os limites territoriais e políticos, e sim os limites da floresta, do alimento e do convívio com outros bichos. A importância da reserva é enorme, porque os grandes predadores precisam de muito espaço e muita floresta para atingir uma população mínima viável para garantir a sobrevivência da espécie”, diz.
A gestação de uma onça-pintada pode durar até 100 dias, e nascem dois filhotes, no máximo. Eles ficam ao lado da mãe por dois anos até se tornarem autônomos para viver sozinhos na mata.